Em 2022, após uma feira estadunidense ter premiado uma imagem digital realizada por meio de um software de Inteligência Artificial (IA), uma enorme controvérsia assolou o sistema artístico global. Importante salientar que, para que as imagens sejam geradas, o usuário necessita inserir textos, ou seja, comandos que incitem ações por parte da máquina. (Veja post da AdC sobre o assunto 16 set. 2022).
Ao compreendermos que o evento se tratava da Feira Estadual do Colorado – um espaço de entretenimento com atrações principalmente rurais, como rodeios e competições de animais, mantida pela Secretaria de Agricultura local – nos surpreendeu a agressividade em relação ao artista e à obra premiados. Surpreendeu-nos ainda mais que esse sistema tenha até mesmo tomado consciência do ocorrido. Entre as atividades, a Feira realiza concursos de cozinha, costura, crochê, agricultura, cerveja e vinho, artes e artesanato e, ainda, de belas artes, em outras palavras, o circuito da arte contemporânea não está entre os objetivos da feira e a feira tampouco é reconhecida por esse circuito.
Foi na modalidade de arte digital que Jason M. Allen inscreveu sua obra, um cientista da computação e designer de jogos de tabuleiro que estava experimentando recentemente com IA nesse setor. Se Allen pode ser considerado um artista, estaria nesse circuito de narração de histórias; alguém que opera entre a literatura e a arte para criar jogos. Não possuía lugar no sistema da arte contemporânea e não passou tampouco a possuí-lo (Veja BULHÕES, Maria Amélia. Desafios: arte e internet no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2022). Nesses termos, sua presença num evento de entretenimento, que contava inclusive com rodas-gigantes, era absolutamente coerente. O valor de seu prêmio: US$ 300 (o equivalente hoje a aproximadamente R$ 1.562,00).
Diante disso, nos perguntamos sobre a discussão em torno da noção de autoria, que aconteceu nas redes sociais. Alguns comentadores reivindicaram o aperfeiçoamento da técnica como algo central para o reconhecimento de uma obra de arte – um ponto de vista ultrapassado desde as primeiras décadas do século XX; nos anos 1980, o uso das chamadas “imagens ready-made”, produzidas por meio de apropriação, reafirmaram a decadência do domínio da técnica como critério de qualidade artística (veja CHIARELLI, Tadeu. “Considerações sobre imagens de segunda geração na arte contemporânea”. Em: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p.257-270).
Afinal, o debate em torno da IA e a arte contemporânea voltou-se para os direitos autorais de artistas cujas imagens circulam online, sendo afetados numa espécie de epidemia de plágio. Mais uma vez, os argumentos que surgiram defendiam como estilos e técnicas de artistas seriam reproduzidos sem seu devido reconhecimento. No entanto, a preocupação com “estilos” nos parece, mais uma vez, proveniente de uma concepção conservadora de arte – cuja centralidade está no “talento” do artista em realizar algo absolutamente “original”.
Assim, levantamos algumas questões: seria a IA uma ameaça à criação artística ou à estrutura atual de direitos autorais que, com a popularização do digital, necessita atualizar-se constantemente? É possível reivindicar autoria de imagens em rede? O sistema da arte contemporânea, hoje, apoiando as iniciativas de certificação digital, estaria preocupado com riscos à garantia de autoria? Diante da possibilidade de produção de imagens por meio de um sistema de IA, é surpreendente que o circuito artístico se revolte, mas use essa mesma tecnologia para divulgar suas vidas, sujeitando-se a aprovações ou desaprovações? E ainda: a autoria, uma vez estando na perspectiva atual da arte contemporânea estruturada industrialmente em termos produtivos, já não é em si coletiva – formada por tantos agentes quantos necessários para a realização de uma obra?
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A artista e teórica Giselle Beiguelman, recentemente, declarou num ensaio que “a cultura visual contemporânea é indissociável da produção imagética nas redes”. Assim, haveria hoje uma “apropriação de imagens sem precedentes”. Como consequência,
“Alteraram-se, com a digitalização da cultura e da ubiquidade das redes, os processos de distribuição de imagem e as formas de ver. Cada vez mais mediados por diferentes dispositivos simultâneos, esses regimes emergentes consolidaram novos modos de criar, de olhar e também de ser visto” (BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu, 2021, p.32).
Diante dessa nova realidade da imagem, na qual as imagens de nós mesmos aparecem em versões sistemáticas de quem somos ao mesmo tempo em que tudo e todos se homogeneízam, o desejo é de inserção social por meio da autoexposição – o que facilita a vigilância de nossos corpos e subjetividades. Essa inserção depende ainda de uma régua de aparência social, com a aplicação de ferramentas para o “aperfeiçoamento” de nossas características – queremos parecer todas com Miquela, a influencer digital –, mesmo que defendamos a diversidade entre nós.
Perante essas questões que a IA nos coloca, qual o nosso medo? Que ela adquira autonomia e nos substitua criativamente pelas máquinas por estas poderem reproduzir um padrão com mais eficiência? Ou que ela reproduza nossas próprias perversidades?
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Nesta exposição, o “Arquivo Indisponível” é a mensagem que nos frustra diante do desejo ansioso por acesso. A impossibilidade de conseguir aquilo que achamos que queremos muito bem pode tratar-se de uma ilusão, já que somos bombardeados por produtos fetichizados; o consumo nos domina, notava Andy Warhol. A impossibilidade de acessar o arquivo remete às imagens perdidas tantas quantas produzidas, mas cujos dispositivos já não estão mais disponíveis (Lucas Bambozzi).
Lembra ainda que o preço que pagamos para tentar realizar nosso desejo é o da vigilância – embora, estejamos nos mantendo ocupados por imagens e informações para que não reste tempo para nos darmos conta do quão controlados estamos sendo (Loveletter.exe).
Se é possível fugir dessa realidade vigilante, talvez o lugar seja aquele de outro mundo possível, onde, lançando mão de avatares, consigamos reformular – ou mesmo conceber a partir de agora – uma organização social que nos contemple em nossas diversidades de seres viventes (Gabriel Massan). Esses avatares indicam como os limites entre o artificial e o natural se apresentam borrados, como escreveu a bióloga Donna Haraway em Manifesto Ciborgue, 1985.
VIRTUAL E REAL não se distinguem. Mais uma vez, encontramo-nos entre a realidade social e a ficção. Eu, robô.